Quando o assunto é segurança de alimentos, o plano HACCP/APPCC (Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle) é um dos principais pontos levantados. Visto que para a construção do plano nós realizamos a identificação dos perigos não intencionais, ou seja, que podem ser introduzidos ou desenvolvidos no alimento.
Portanto, o HACCP é uma excelente ferramenta para segurança de alimentos. Pois ao construi-lo nós dedicamos um tempo para analisar, identificar e definir controles para os perigos significativos. Juntamente com o HACCP podemos utilizar o Food Fraud e Food Defense para analisar os perigos intencionais.
Na construção do plano HACCP as ferramentas e as análises realizadas giram em volta dos perigos. Sendo eles o ponto principal do plano, dessa forma este artigo foi elaborado com o intuito de auxiliar na identificação dos perigos.
1. IDENTIFICAÇÃO DOS PERIGOS
Vamos entender, de uma maneira mais detalhada, cada grupo de perigos listados no plano HACCP e exemplos.
1.1. PERIGO BIOLÓGICO
Chamamos de biológicos os perigos que são causados por microrganismos e outros seres vivos. Como por exemplo: bactérias, vírus e parasitas.
Quando falamos de bactérias vem em mente as mais conhecidas e discutidas, como Clostridium botulinum, Salmonella spp., Listeria monocytogenes, Escherichia coli, Staphylococcus aureus, Yersinia enterocolitica, entre outros. Pois, elas são consideradas patogênicas, ou seja, podem transmitir doenças por alimentos.
Nós temos que ter uma atenção especial com esse grupo de perigos. Pois, eles podem se multiplicar e ultrapassar os níveis aceitáveis durante processamento e comercialização.
Como por exemplo, produtos refrigerados estocados um tempo considerável em temperatura boa para crescimento de psicrofilos. Caso, eles não tenham sido destruídos no processo multiplicar e atingir um nível apropriado para causar doença.
Salmonella spp. e Staphylococcus aureus necessitam de temperatura mínima de 7-10°C para crescerem, ou seja, temperatura da geladeira (1). Um ponto importante é que quanto mais baixa a temperatura mais tempo o microrganismo necessita para se multiplicar, então a 10°C os psicrofilos necessitam por volta de 200 minutos, enquanto a 25°C esse tempo reduz para 30 minutos (1).
Um ponto que pode nos confundir nesse grupo é se as toxinas produzidas por bactérias ou fungos são perigos biológicos ou químicos? Costumo colocar que as toxinas encontradas no alimento, que causam infecção, podem ser identificadas como perigos químicos. Por outro lado, se consumido o microrganismo e a toxina for produzida dentro do organismos ocasionando uma infecção, podemos considerar perigo biológico. Porém, essa é uma definição que pode variar. O importante é não esquecer de listar as toxinas no plano caso exista a possibilidade delas ocorrerem.
1.1.1. Medidas de Controle
As medidas de controle, normalmente relacionadas a esse perigo, são: fornecedor homologado, matéria prima de qualidade e com baixa contagem microbiológica, tratamentos térmicos que possuem o objetivo de reduzir a contagem microbiológica, acidificação para inibir crescimento de microrganismos, higienização de equipamentos e utensílios, eliminação de cantos mortos onde pode ter acúmulo de matéria orgânica, refrigeração, temperatura de processo, entre outros.
Dica: O tratamento térmico pode ser uma medida de controle eficiente e muitas vezes podemos utilizar a metodologia preditiva. Curva teórica de crescimento dos microrganismo de acordo com modelo matemático e condições físico químicas do alimento. Essa é uma ferramenta que ajuda bastante, mas lembrando que sempre deve ser validada na prática.
1.2. PERIGO QUÍMICO
Os perigos químicos são causados por químicos que podem ser introduzidos ou desenvolvidos nos alimentos.
1.2.1. Perigos desenvolvidos no alimento
Na identificação dos perigos químicos vamos começar pelas toxinas, elas podem ser desenvolvidas nos alimentos por microrganismos. Como por exemplo, a histamina, que é produzida por bactérias através da histidina. Ela possui potencial alérgico e pode causar intoxicação nas pessoas, exemplo de alimento: atum. A legislação brasileira (Portaria nº 185 de 13/05/1997) estabelece um limite máximo de 100 ppm para pescados formadores de histamina. O controle da produção da histamina é a higiene e manutenção do peixe à baixa temperatura durante toda a armazenagem, o que diminui a atividade microbiana.
Podemos listar também as micotoxinas, que diferente das toxinas são produzidas por fungos. Esse perigo é muitas vezes encontrado em grãos.
Agora, pensando nos perigos que podem vir com a matéria prima, podemos listar os metais pesados, como cobre, mercúrio, cádmio. Eles podem ser encontrados em peixes, ou por exemplo, em alimentos irrigados com água contendo metais pesados.
Existem também alimentos que possuem toxinas naturais, como alguns tipos de cogumelos e mandiocas.
1.2.2. Perigos introduzidos no alimento
Para os perigos que podem ser introduzidos na matéria prima, antes do processamento, temos no caso de alimentos de origem animal, o antibiótico, pois eles podem ser fornecidos ao fabricante com limite do acima do aceitável, apresentando um perigo químico. Portanto, devemos nos atentar as legislações como a IN Nº 51, de 19 de dezembro de 2019 que estabelece os limites máximos de resíduos (LMR) em alimentos de origem animal.
Podemos adicionar a esse grupo também resíduos de agrotóxicos, como pesticidas e herbicidas, para eles também é importante saber o limite de aplicação e tempo de carência.
Para os perigos que podem ser introduzidos durante o processamento, podemos destacar substâncias químicas do meio de produção, como lubrificantes que não são de grau alimentício ou desinfetantes utilizados para limpeza de equipamento e que podem não ser retirados totalmente no enxágue.
Desinfetantes fortes, como no caso de hipoclorito, são um perigo, os resíduos do cloro podem reagir com matérias orgânicas formando compostos tóxicos como a dioxina. Portanto, assim como é importante realizarmos a limpeza é importante realizarmos o enxágue de forma adequada.
Os pigmentos tóxicos de embalagens ou equipamentos também podem ser transferidas para o alimento. É importante lembrarmos dos perigos relacionados aos materiais auxiliares na produção. Como o gás utilizado para aquecimento, líquidos de resfriamento nos trocadores de calor, ar de contrapressão, entre outros.
1.2.3. Medidas de Controle
Pensando nas medidas de controle para o caso de resíduos de desinfetantes, é importante realizamos a revisão do plano de higienização da planta. Para o perigo de toxinas de microrganismos, podemos utilizar a mesma linha de raciocínio dos perigos biológicos. E para os perigos químicos que podem vir com a matéria prima é importante homologar o fornecedor e estabelecer padrão de qualidade no recebimento.
1.3. PERIGO FÍSICO
Os perigos físicos são aqueles que podem causar danos físico ao consumidor.
Para auxiliar na identificação dos perigos, podemos listar alguns exemplos, como fragmentos de:
- Madeira: oriundos de paletes ou caixas utilizadas na estocagem.
- Vidro: podem originar da própria embalagem de vidro ou elementos de vidro presentes na área de produção como lâmpada quebrada.
- Metálicos: podem vir de peças que foram desprendidas do próprio equipamento, por isso é importante a implementação de uma boa manutenção preventiva
- Plástico duro: podem ser oriundos da própria embalagem ou elementos presentes na área de produção. Por isso, deve ser implementado Programa de Plástico Duro e Vidro para que os operadores saibam lidar quando ocorrem emergências.
- Insetos: é necessário uma boa higienização e controle de pragas na planta.
- Cabelos e pelos de seres humanos, por isso é importante utilizar toucas e jalecos de manga comprida.
É comum nesse tipo de perigo pensarmos em adornos que pode ser introduzido no alimento por algum descuido. Entretanto, não são necessariamente perigos físicos, pois fazem parte do programa de boas práticas de fabricação (BPF). Não é permitido utilizar adornos, como brinco, anel, grampo, relógio e nem esmalte. O BPF vem antes do plano HACCP na pirâmide de segurança de alimentos então devem ser cumpridos primeiro, dessa forma se a conduta de utilizar adornos já é seguida o perigo físico deixa de existir.
Conforme Figura 1 exemplo de como deve ser a entrada de operadores e visitantes na planta de produção. Sem adornos, com proteção aos pelos e cabelos, sem esmalte, roupas limpas e adequadas.
1.3.1. Medidas de Controle
Como medidas de controle para esses perigos temos a implementação de algumas barreiras físicas para conter esses fragmentos ou equipamentos para detecção desses perigos.
Como por exemplo detector de metais ou peneiras. Mas lembrando deve ocorrer a validação, em detector de metais verificar se ele consegue detectar os metais em determinada frequência. As peneiras através da da validação do mesh com certa frequência. Para essa validação pode ser utilizado um paquímetro.
Assim como já foi citado, a higienização da planta e das pessoas em contato com o alimento podem evitar a introdução de perigos físicos, exemplo: fragmento de insetos.
1.4. PERIGO ALERGÊNICO
São alimentos que podem causar alergia, ou seja, uma resposta imunológica do corpo sensível à certas substâncias. A lista com os 17 alergênicos considerados está disponível na RDC 26/2015.
Normalmente, o corpo responde imediatamente após a ingestão do alimento o qual é alérgico. Como são respostas particulares de cada indivíduo, as intensidades variam, não se tem no Brasil uma norma que define o nível aceitável de um alergênico no alimento.
Por isso, consideramos o nível aceitável como ausente, pois em algumas pessoas os traços de certas substâncias podem causar alergia. Entretanto, fora do Brasil foram definidas doses de referência em encontro da FAO/OMS em que a maioria dos consumidores alérgicos não sofreriam uma reação adversa (2).
A maior preocupação com esse perigo são as contaminações cruzadas, onde o alimento pode ser contaminado com algum ingrediente que não está na formulação. Portanto, temos que realizar uma higienização correta e validação da linha, com kits já existentes no mercado, para garantir que não haja resíduo do material.
O conceito de alergia alimentar e intolerância à glúten ou lactose, por exemplo, pode ser confundido. A reação alergia é uma resposta do sistema imunológico, o corpo reage à substância como se ela fosse um agressor, já a intolerância é quando o corpo não consegue digerir um alimento ou nutriente.
No caso da intolerância à lactose a pessoa não possui as enzimas para hidrolisar a lactose, por isso precisa ingerir as enzimas. Esses conceitos trazem uma abordagem diferente com relação ao consumo, pois a pessoa com intolerância à lactose pode ingerir leite sem lactose já a pessoa com alergia à leite, provavelmente tem alergia a proteína do leite, dessa forma não pode ingerir o leite sem lactose (3).
1.4.1. Medidas de Controle
A medida de controle muitas vezes para esse perigo é a rotulação, ou seja, declaração do alergênico na lista de ingredientes. Outras medidas são realizar a limpeza da linha e segregar os alergênicos no estoque. Por exemplo, se possível manter eles nas camadas de baixo, caso as matérias primas fiquem empilhadas, para evitar que caia alergênico no material armazenado em baixo.
1.5. PERIGO RADIOLÓGICO
O perigo vem de substâncias instáveis que chamamos de radionuclídeos, para que o núcleo volte a estabilidade eles realizam uma alteração interna que emite radiação ionizante. A radiação pode ser emitida em forma de matéria que é o tipo alfa e beta ou emitida por ondas eletromagnética o tipo gama (4).
A radiação pode chegar nos alimentos por ocorrência natural ou acidental. Naturalmente tem se material radioativo no solo, água, ar, crosta terrestre e espaço.
Os acidentes que acontecerem em Chernobyl e Fukushima trouxeram preocupação para área de alimentos. Mesmo após um tempo pode ser detectada radioatividade nos alimentos, pois os radionuclídeos podem ser passados para o solo onde tem a plantação (4).
O perigo radiológico acontece raramente na área de alimentos, mas quando ocorre o perigo é alto.
Não temos legislação ou referência no Brasil sobre o nível aceitável de contaminação radioativa em alimentos, somente para água potável. De acordo com a portaria GM/MS Nº 888 os níveis de contaminação radiológica não deve exceder 0,5 Becquerel/litro (Bq/l) para atividade alfa e 1,0 Bq/l para atividade beta. A unidade da atividade radioativa é definida como uma transformação de elemento instável por segundo (5).
Entretanto, há legislação sobre a dose de irradiação que pode ser aplicada (RDC 21/2001 – Regulamento técnico para irradiação de alimentos).
1.5.1. IRRADIAÇÃO
Com relação a esse tema, irradiação e radiação, podem surgir algumas dúvidas. A radiação é a energia emitida por um elemento radioativo de forma espontânea a partir de um núcleo instável. A irradiação é quando o alimento ou substância recebe a radiação ionizante. É um tecnologia usada para inibir brotamentos, retardar maturação, reduzir contagem microbiológica, estendendo a vida de prateleira, esteriliza alimentos, principalmente para pessoas com sistema imunológico comprometido. Importante lembrar que a radiação não faz com que o alimento se torne radioativo (6).
Outro ponto que é importante ser esclarecido é que as radiações emitidas por rádio, celular, micro-ondas não são ionizantes, ou seja, são energias eletromagnéticas transmitidas por ondas, mas não são ionizantes.
Dicas relevantes quanto a irradiação é que ela não pode substituir as boas práticas de fabricação e agrícola. O que as vezes acontece para mascarar a falta de higiene, aplicando doses acima do estabelecido e podendo gerar compostos causadores de câncer, ainda não há evidências da formação desse compostos. Por outro lado, a dose aplicada pode até ser respeitada, mas não será o suficiente para redução de microrganismos se a contagem inicial for muito alta devido as más condições higiênico-sanitárias.
A vantagem de se utilizar irradiação é que podemos realizar no alimento já embalado e não causa alterações sensorial, aparência e nutricional no produto.
1.5.2.Medidas de Controle
Como medidas de controle desse perigo é indicado conhecermos a origem das embalagens e matérias primas, para sabermos se foram plantadas em áreas de risco radiológico. Também devemos verificado o fornecimento da água, principalmente se for de poços artesianos.
2. ONDE ENCONTRAR AS INFORMAÇÕES PARA INDENTIFICAÇÃO DOS PERIGOS NO PLANO HACCP?
Seguem dicas de locais onde podemos encontrar informações sobre os perigos biológicos, químicos, físicos, alergênicos e radiológicos.
PERIGO BIOLÓGICO
– Artigos/periódicos da ICMSF.
– Bad Bug Book do FDA: “Handbook of Foodborne Pathogenic Microorganisms and Natural Toxins”.
– RDC nº 331 e Instrução Normativa nº 60 de 2019.
PERIGO QUÍMICO
– Resolução – RDC 487 e a Instrução Normativa 88.
– Especificações de identidade, pureza e composição aprovados pela Anvisa.
– Farmacopeia Brasileira ou oficialmente reconhecidas.
– Código de Produtos Químicos Alimentares (Food Chemicals Codex) ou JECFA.
– RDC nº 331 e Instrução Normativa nº 60 de 2019: para toxinas bacterianas em alimentos.
– Instrução Normativa n°51 – 19 de dezembro de 2019.
PERIGO FÍSICO
PERIGO ALERGÊNICO
– Guia sobre Programa de Controle de Alergênicos – ANVISA
PERIGO RADIOLOGICO
– PORTARIA GM/MS Nº 888, DE 4 DE MAIO DE 2021.
– Artigo: Radioatividade e Irradiação de Alimento.
3. CONCLUSÃO – IDENTIFICAÇÃO PERIGOS PARA PLANO HACCP
Para concluir vamos destacar pontos importantes sobre a identificação de perigos no plano HACCP.
Os perigos dependem:
- Diretamente do ambiente físico em que ocorre o processo se é uma empresa com instalações novas ou antigas;
- Do processo: quais são as etapas e como elas são realizadas. O mesmo processo pode ser realizado de várias maneira podendo inserir diferentes perigos;
- Do produto em questão: existem produtos mais estáveis, outros mais propício para crescimento de microrganismo ou formação de toxina ou por conter substâncias alergênicas ou por serem proveniente de regiões radioativas;
- De como a organização lida com as segurança de alimentos. Se os funcionários estão conscientizados sobre a importância de suas ações. E se o ambiente é colaborativo para que ações sejam tomadas quando necessárias para eliminação ou redução de um perigo.
- Frequência com que as medidas de controle são aplicadas e como são realizadas…
Ou seja, os perigos dependem de praticamente TUDO, por isso é tão importante olharmos para cada caso como um caso específico. Utilizamos os conhecimentos de processos e experiências passadas, mas esse conhecimento deve ser aplicado com uma visão crítica e específica para o processo em questão. E para decidir se o plano HACCP será realizado por produto ou por linha de produção, é importante analisar as diferenças.
REFERÊNCIAS
- STEVENSON, K, E. HACCP Establishing Hazard Analysis Critical Control Point Programs: A Workshop Manual. Publicado por The Food Processors Institute. 1993.
- Níveis aceitáveis de alergênicos em alimentos segundo FAO/OMS. Disponível em: https://foodsafetybrazil.org/niveis-aceitaveis-de-alergenicos-em-alimentos-segundo-fao-oms/?fbclid=IwAR2wjJW2FnptLTZEdGPCGKexVHK0_1iuod6NFZ9jTtjyGp1ICiiBsqR11Uc.
- Faculdade de Medicina UFMG. Entenda a diferença entre intolerância e alergia alimentar. Disponível em: https://www.medicina.ufmg.br/entenda-a-diferenca-entre-intolerancia-e-alergia-alimentar/.
- Perigos radiológicos em alimentos: o que são? Disponível em: https://portalefood.com.br/haccp/perigos-radiologicos-em-alimentos-o-que-sao/
- COUTO, R, R. SANTIAGO, A, J. Radioatividade e Irradiação de Alimentos. Revista Ciências Exatas e Naturais, Vol.12 , n° 2, 2010.
- Irradiação e perigos radiológicos em alimentos. Disponível em:
https://foodsafetybrazil.org/irradiacao-e-perigos-radiologicos-em-alimentos/.
Autora:
Daniela Almeida Vega
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